domingo, 2 de junho de 2013
Leleco era um menino especial, e tinha sido assim desde sempre. Nasceu
antes da hora e, ao fazê-lo, não chorou. Vieram muitos homens de branco,
alguns usando avental, e declararam:
- Nasceu cedo demais! Não teve nem força para chorar, isto só pode ser problema de coração.
Mãe, pai, avós, tios: todo mundo desesperado! Então aquele menininho tão esperado
Engraçado nos adultos é decidir as coisas sem nunca perguntar às crianças. Se tivessem perguntado, Leleco teria explicação para tudo, e ninguém precisaria ter derramado uma lágrima sequer. Leleco nasceu logo porque não aguentava mais ficar ali, apertado na água! Se fosse pelo aperto, teria se segurado, mas a água era dura de aturar – por toda a infância foi um custo fazer o menino tomar banho! E não chorou porque não julgou ser necessário. Estava feliz de estar ali, do lado de fora, finalmente podendo conhecer sua família. Chorar? Besteira! Só via motivos para sorrir! Mas, ninguém pergunto, então ninguém ficou sabendo. E, se o tivessem feito, a vida de Leleco teria sido bem mais fácil., tão amado, tão querido, tinha problema de coração? Choraram, choraram, choraram. Até pararem de chorar e resolverem que iriam ter todo o cuidado do mundo com ele.
Como todos achavam que ele tinha problema de coração, todos zelavam
pelo menino, o tempo todo. Não podia pegar chuva para não resfriar, não
podia comer salame para não
enjoar, não podia jogar bola para não se cansar, não podia correr para
não desgastar. Não podia uma porção de todas as coisas. E de todas as
coisas que Leleco não podia fazer, uma o aborrecia muito. Ele podia
ficar sem tomar chuva, ficar sem comer salame, ficar sem jogar bola,
ficar sem correr. Ele podia obedecer e ficar sem fazer nada disto, sem
reclamar. Mas uma coisa ele não aceitava. Uma proibição que era a mais
proibida, a mais doída. Ele não podia tocar em bichos – para não se
adoentar!
Leleco não entendia a razão deste impedimento. Seus pais não apenas não
o deixavam ter cachorro – ou gato, ou papagaio, ou tartaruga – mas
também não deixavam que ele se aproximasse dos animais dos outros. Se ia
à casa de um amigo que tinha uma gatinha, por exepmlo, sua maẽ ligava
antes, e avisava à mãe do amigo:
- Leleco tem a saúde muito frágil! Não pode ficar doente, nem eu quero arriscar. Não deixe que ele se aproxime de nenhum animal, por favor. Ele pode ter uma crise de alergia, que pode dar uma acesso de tosse, que pode coçar a garganta, que pode fazer mal ao seu coração...
E a mãe de Leleco falava assim tanta tanta tanta coisa, que as mães de
seus amigos morriam de medo de recebê-lo em casa. Quando ele chegava,
não apenas os bichos tinham evaporado, mas também todos os sinais de que
um animal vivia na casa. Leleco jamais deparou-se com um pêlo de gato
no sofá da casa de um amigo. Ou um potinho de ração de cahorro na
cozinha. Nada, nada. As mães dos amigos o vigiavam de perto, com medo de
que o menino tivesse algum problema justamente quando estava sob seus
cuidados. E Leleco, coitado, sentia-se sempre um intruso em todos os
ambientes.
O tempo foi passando e Leleco foi crescendo. Por mais que quisessem,
seus pais já não podiam controlá-lo como antes, embora tentassem fazê-lo
da mesma forma. Mas, chegou o dia em que não dava mais. E Leleco foi
sozinho para a escola – bem na esquina de sua casa – pela primeira vez.
Foi e voltou, tudo normal. A mãe respirou aliviada. Ele foi a segunda,
terceira vez. Logo, virou rotina. E a mãe, sem perceber, começou a
relaxar.
Leleco, por sua vez, estava feliz da vida! Conseguira, mesmo que
controlada, sua tão sonhada liberdade. E, como era um menino muito
tranquilo e obediente, seguia todas as recomendações da mãe. Todas,
menos uma.
O menino não tomava chuva, não comia salame, não jogava bola, não
corria. Mas não conseguiu se manter longe dos animais. Logo na terceira
vez em que ia sozinho à escola, um gatinho cruzou o seu caminho.
Instintivamente, abaixou para fazer-lhe um carinho. O bichano gostou, e
enroscou-se em suas pernas. Começava, ali, uma história de amor da vida
toda.
Leleco, que sempre quisera ter um bichinho, começou a reparar nos
animais abandonados pelo caminho. E começou a tratar deles. Sem que
ninguém soubesse, pegava-os e o levava para um beco, logo depois da
padaria. Construiu ali, longe dos olhos de todos, um pequeno abrigo.
Juntou caixas de madeira, trouxe cobertores, improvisou potes. Levava
gatinhos e cãezinhos abandonados para lá. Tratava-lhes os machucados,
dava-lhes o que comer. E, mais que tudo, enchia-lhes de carinho. Todos
ficavam bons quase instantaneamente. E amavam Leleco de volta com aquele
amor imenso e incondicional que só os bichos tem. O menino, de uma hora
para outra, mudou. Tornou-se mais disposto, corado, sorridente. Leleco
estava feliz.
Mas como não se consegue esconder um grande segredo por muito tempo, um
dia descobriram o que estava acontecendo. E descobriram assim, de uma
forma boba, sem razão de ser. Leleco voltou para casa, um pouco atrasado
para o jantar. Estava distraído e esqueceu de verificar suas roupas.
Quando sua mãe pegou a blusa para lavar, descobriu muitos e muitos pêlos
nela. E todas as cores, de todos os tamanhos, de todos os bichos que
Leleco tinha. Entrou em pânico! Chamou o filho, e ele lhe disse a
verdade. No dia seguinte, já estavam em um consultório médico.
Os pais de Leleco o levaram para uma consulta com um especialista.
Achavam que o filho estava correndo sério perigo, tendo a saúde tão
frágil e estando cercado por animais de rua. Entraram no consultório e
falaram e falaram e falaram sem parar. Leleco, triste, ouvia a tudo sem
emitir um som. O gentil homem de branco ouviu o que os pais de Leleco
disseram, sorriu para ele e disse:
- Venha aqui um instatinho, rapaz!
Ouviu o coração de Leleco, pediu que ele falasse 'AAAA' e respirasse fundo. Olhou para ele. Olhou para seus pais.
- Quem disse que ele tem problema de coração?
- Ele nasceu antes do tempo, nos avisaram. Fizeram muitos exames, não concluíram nada. Então, nós achamos que o problema era grave e sempre tivemos muito cuidado com ele. Mas agora, com isto dele ter ficado metido no meio de tantos bichos... Ele piorou muito doutor? É grave sua condição? - a mãe de Leleco nem respirava para falar.
- Bom, Leleco tem algo, sim.
- O que? - o pai também estava aflito.
- O que Leleco tem não é grave. Aliás, não é grave, não é sério, não é ruim. Leleco tem um coração grande, enorme, do tamanho do mundo! E seria bom se mais pessoas tivessem o coração deste tamanho! Ele não é, nunca foi doente. O que ele precisa é viver a vida como todos os outros meninos. E, se ele gosta de bichos, acreditem: isto só o fará bem!
E assim foi que Leleco começou a fazer tudo o que os outros meninos
faziam, e descobriu que gostava de correr e de jogar bola, e que não
gostava mesmo de comer salame nem de pegar chuva. Teve, a partir deste
dia, uma infância normal, saudável e feliz.
Tudo isto aconteceu há muito, muito tempo atrás. Leleco já não é mais
menino, nem rapaz. Já é um senhor, querido por todos. E que continua,
até hoje, usando seu coração do tamanho do mundo da forma que acha
certo. Leleco continua cuidando com carinho de todos os animais que
cruzam seu caminho.
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