quinta-feira, 20 de junho de 2013
Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais velha do que qualquer outra.
Abrigava, sob a sua corcha, toda a sabedoria de África.
A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o
antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única
árvore das redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais
altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos
ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos
baixos para fazerem a sesta…
E assim a árvore conhecia todos os segredos dos
pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais.
É que ela escutava com todas as suas folhas.
Até os homens vinham sentar-se debaixo dela no
momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos
seus ramos.
A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o
mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia
calar-se, enquanto eles gostavam de falar.
Mas a árvore não guardava para si o seu saber:
àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a
resposta a muitas questões.
Quando os seus filhotes estavam suficientemente
grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham
por hábito levá-los até à árvore. Ao cair da noite, esta enchia-se de
chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar
os mais palradores. E cada um escutava o murmúrio que subia da raiz mais
profunda até ao raminho mais alto.
No dia seguinte, os jovens sabiam um pouco mais da
arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham
sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de
mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos
daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!
E cada girafinha que partia a mascar um punhado de
folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que
caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da
árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura
de uma presa fácil.
Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e estúpidos
como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes tinha ensinado porque
não sabiam escutar.
Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana
com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles que precisavam
para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a
guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a
escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez,
sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer.
Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…
Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram
e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a
desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela
deixou de lhes falar.
E todos diziam que ela estava morta.
* * *
Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia
que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava
contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa uma
girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.
Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar
decidido. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não reflectia nem
fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia.
Contudo, era um homem.
Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com
as pontas dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como
se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno
homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O
homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E
encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar
palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do
homem se iluminava.
Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando
voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a
cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de
desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso
nas mãos, começou a cortar o tronco.
E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das montanhas.
Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore.
Todos acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo.
É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua
aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os
animais não se atreveram a segui-lo.
Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a
trabalhar. Tinha uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha
sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã.
Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro.
Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar
em conjunto.
Quando o homem pegava de novo no machado para podar
os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a
árvore com ele fizeram-lhe sinal que parasse:
— Pequeno homem, nós ajudámos-te — disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. — O nosso trabalho deve ser pago.
— Mas… com que é que vos vou pagar? Eu não tenho nada, bem sabem!
— Deixa-te disso! — insistiram os homens fortes. — Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte.
— Não pode ser — protestou o homem. — É preciso que o
tronco fique inteiro para o tantã. Se não, como é que a tribo poderá
tocar?
Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos.
* * *
Era uma assembleia de homens muito velhos e muito
tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento,
tanto a propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes
agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e
também quando não lhos pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito
reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados…
pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno
velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por
cima da cabeça e tomou a palavra:
— O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado.
E expeliu uma baforada do seu cachimbo.
Os outros membros do Conselho, sentados em círculo,
aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada
do seu cachimbo e guardaram silêncio.
Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.
Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou
para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho
dos Anciãos:
— Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que estais aqui reunidos.
— É verdade que estamos aqui — respondeu o Ancião. — Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.
Expeliu uma outra baforada e calou-se.
Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:
— Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.
O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio.
Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um passo em frente.
De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente:
— O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho.
O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado
até ao final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir…
que decidiria mais tarde!
De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a
dar aos homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua
vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o
pequeno homem assim o fez, porque era costume dar uma prenda aos
Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos.
E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar.
E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em
achas, toros e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta
da aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os
animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.
* * *
Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na
diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda
chegava para fazer um bom tambor para a tribo.
Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado,
no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso
decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja lâmina
curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a
fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido.
— Ah! És tu? — disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. — O que queres de mim?
— Podias emprestar-me o teu podão? — perguntou muito educadamente o pequeno homem.
— Eh! — respondeu o vizinho, tão amável quanto um
crocodilo a quem interromperam a digestão. — Não me deixas dormir com
esse barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão! E
se eu precisar dele?
— Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!
— O que me dás em troca?
— Sabes bem que não tenho nada de meu.
— Ah não? E essa árvore? É tua, não é?
— Sim, mas… — começou o pequeno homem.
— Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu podão.
Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o pequeno homem precisava.
Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo.
Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou.
Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha cinzel para o fazer.
De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore?
Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.
— Tu, outra vez! — bocejou o vizinho. — O que queres?
— Desculpa — disse o pequeno homem com a sua voz
gentil. — Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se
fazes o favor.
— Em troca? — zombou o vizinho. — Não há troca
nenhuma porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha
fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.
* * *
Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco
desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito
tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio
de coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas
endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som
chegasse mais longe.
Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia
dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para
atear um fogo. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais
longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.
Foi então pedir aos homens fortes a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.
Foi então pedir aos homens fortes a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.
— De acordo, — disseram eles — mas com a condição de pores uma acha na nossa fogueira, como todos fazem.
— Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! — respondeu.
— Ah sim? E isto, isto não é madeira? — perguntou o mais forte dos homens fortes, indicando o pequeno tantã.
Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz.
E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso
tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar
e abandonar o seu belo projecto.
Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que,
apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um
grande tambor.
Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé
é o nome que se dá em África a esta espécie de tambor). Mas o pequeno
homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.
Partiu então à procura do rebanho de cabras. A
rapariga que as guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem
pensou que seria mais fácil falar com ela.
— Bom dia — disse à criança.
— Bom dia — respondeu ela. — És tu que dás madeira a toda a gente em troca de uma ferramenta ou de lume?
— Sim, quer dizer… — começou ele.
— O que queres de mim? — interrompeu a criança.
— Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho madeira para te dar.
— É pena — disse a rapariga. — Porque também eu
necessito de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho
não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.
— Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta — suplicou o pequeno homem.
— Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! — retorquiu a criança.
E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.
* * *
A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma
corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la,
esticá-la, batê- la, para a tornar mais suave e tão sólida como o couro.
Só faltava levá-la ao curtidor.
Aquele que curtia todas as peles da tribo morava
sozinho fora da aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita
água. E os outros não tinham querido que ele se instalasse perto, devido
ao cheiro insuportável das peles molhadas.
Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também
ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma
parte, como prémio do seu trabalho.
— Mas já não há nenhuma árvore! — lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor!
— De acordo — concluiu o curtidor. — Contentar-me-ei com um bocado do tambor.
E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé.
Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer.
Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida.
Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um
pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem
nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.
Regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho.
Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da
savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e sentiu de novo
coragem. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.
* * *
O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé
muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter
talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o
homem não ficou decepcionado, porque era um belo djembé:
esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e
suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, quis
experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que
saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de criança,
era ampla e vasta e profunda como a floresta.
O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira.
Um por um, todos os membros da tribo aproximaram-se
dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena
guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho
crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas
enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno
tambor. E faziam silêncio.
Do pequeno djembé elevavam-se palavras e
frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do
caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo
homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens
escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras,
faziam silêncio.
Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada
pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E,
graças às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber,
por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.
E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África.
A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o
antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que
se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas,
que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob
os ramos baixos para fazerem a sesta.
Até os homens…
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